Pequena Flor de Laranjeira

Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.

Arquivo de perda

Senha de acesso

São muitas as senhas. Banco, e-mail do google,  login nas lojas do Ponto Frio, Paypal, Programa Multiplus Fidelidade, Facebook, e-mail do yahoo, Twiter, senha de acesso, senha de resgate, senha da rede doméstica da internet. É preciso misturar números e letras, para dificultar o acesso. Essa está curta de mais. Não passe de trinta caracteres. Use símbolos, de preferência. Símbolos? Sim, “$” por exemplo.

É melhor que sejam muitas senhas. Uma única seria como uma chave mestra, que abre todas as suas portas, te devasta, rouba seu dinheiro, sua conta, seus amigos, sua privacidade. Uma senha para cada conta. Não use a data de nascimento. Nem a de casamento. Nem a do aniversário do seu filho. Não anote em nenhum lugar. Não divida sua senha com ninguém.

E de tanto decorar senhas esqueço os aniversários. Esqueço os amigos. Esqueço que já é outono e posso tirar os casacos do armário e colocá-los ao sol. Esqueço, às vezes, que gosto de poesia, que o Drummond está sempre à espreita no alto da estante. Esqueço que existe um jardim nos fundos de casa, que as flores ainda não fugiram de seus vasos e esperam uma visita minha.

De tanto tentar dificultar o acesso dos outros, me esqueço de procurar o caminho para o coração de quem amo. Há quanto tempo não ligo para a Malu, minha prima, a mesma com quem eu gastava horas ao telefone quando era adolescente? Há quanto tempo não escrevo para minha avó, mesmo sabendo que uma carta frente e verso fará com que ela sorria durante um mês inteiro?

Mas é preciso estar atento, cuidar para que ninguém tenha acesso aos seus dados, aos seus segredos. Os caminhos abertos perdem importância, é preciso, antes, fechá-los. Afastar os outros. Dificultar. A maldade está sempre à espreita e não se sabe ao certo quem são as pessoas que estão ao seu lado. Dificulte. Não conte. Não diga. Se cale. Se cale sempre. E não se esqueça nunca daquilo que apenas você sabe. Essa é a sua riqueza. Riqueza que você não pode e não deve jamais dividir com ninguém. O Drummond que fique na beira da estante, afinal, poesia não é senha.

Receita de felicidade

Da noite para o dia ele perdeu todo o seu dinheiro. Parece que houve um incêndio que tomou as plantações de um lado da fazenda, no outro, uma peste atacou a criação de galinhas, os peixes apareceram mortos e os funcionários todos fugiram por medo da represália. Devia de ser mau olhado. Lá se foi trator, estaleiro, caminhonetes, gado, os chalés da fazenda, tudo. Tudo. Só podia ser mau olhado.

João, sereno, se entristeceu, pensou no trinta anos de trabalho para construir o patrimônio, pensou depois que ainda era jovem e poderia, com esforço, resconstruir, não tudo, mas alguma coisa. Já na cama, se agitava preocupado, mas caiu no sono na esperança de tudo se acertar. Amanhã ele veria o que fazer.

A manhã, no entanto, acordou cinza. O telefone da fazenda toca e ele descobre que o filho, em intercâmbio lá do outro lado do mundo, sofreu um acidente e está em coma. Não é nem possível falar com ele. A mulher se desespera. Eles procuram às pressas uma passagem aérea. Quando voltam a ligar no hospital, uma enfermeira, em língua estrangeira, diz que não adianta mais. Os procedimentos já estão sendo tomados para o envio do corpo de volta à terra natal.

João pensou no filho, ele sempre foi melhor que eu, sempre viveu melhor que eu. De tudo o que João trabalhou, foi o filho quem melhor aproveitou. Viveu, viajou, conheceu gente e o mundo. Era um rapaz alegre, corajoso, confiante na vida. João sentia que, de tudo, era o filho o seu maior tesouro, e que este também tinha se ido.

Sem dinheiro e sem o filho, João só tinha a esposa e a vontade de continuar vivendo. E viveu. Triste, mas viveu. Até que descobriu um câncer de próstata já avançado. Sem recursos, foi internado no SUS e lá passou a conviver com 3 outros senhores que também estavam em tratamento de câncer.

De todos, a história de João era a mais triste. Seus companheiros, também sofrendo, buscavam animá-lo. Um deles pensou que aquilo poderia ser uma prova divina, um teste de fé. João já não queria mais ter fé, acreditar num Deus que lhe roubou os bens, a família e agora a saúde. Para ele, não fazia mais sentido lutar por uma vida tão ausente de qualquer alegria. Outro falava de bênçãos futuras, dizia que a vida talvez pudesse ainda melhorar, e João lembrava dos lugares longíquos que o filho conheceu, e ele sempre sem poder estar perto, sem poder apertar a sua mão. O terceiro, ao ouvir as histórias do filho de João, disse que ele era um homem abençoado, que ele tinha algo que ninguém lhe roubaria jamais, que era essa saudade que lhe enchia o peito, trazia lágrimas aos olhos, o homem dizia que era ela, era essa saudade o que lhe traria a saúde, a riqueza e a alegria que um dia lhe roubaram.

O primeiro disse que aquilo tudo era uma bobagem, que saudade não curava ninguém. O segundo pensou, ficou quieto por um tempo, lembrou dos netos que não via há anos, e acenou com a cabeça. O terceiro já estava com o olhar lá fora, longe, sorrindo. João fechou os olhos, amaldiçou uma divindade qualquer e fez uma promessa de que nunca ninguém jamais lhe roubaria sua saudade. Em quatro meses todos morreram, o primeiro infeliz, o segundo com alguma esperança, o terceiro com alegria. João morreu carregado de saudades de tudo o que teve e tudo o que viveu.

Conselhos para menina

Abre o peito, menina! Abre bem o peito que é com o peito aberto que se lida com a vida! Esconde esse seu medo de menina, essa sua timidez. Levanta esses seus olhos baixos, e acima de tudo, ama. Ama sem medo.

Você ainda se lembra de quando o mocinho mais bonito da escola paquerava a sua melhor amiga. Ainda se lembra de quando esperava uma carta e ela não chegava. Você ainda se lembra da alegria que passava ao largo, da festa no interior da vitrine, dos seus passos solitários na calçada. Você ainda se lembra do segredo que sua melhor amiga não te contou. Ainda se lembra do resultado daquele concurso, em que você fazia parte do pequeno grupo não selecionado.

Abre o peito, menina! Não pense que essas lembranças são suficientes, que outras mais não virão. Pessoas queridas irão embora. Você perderá dinheiro e sentirá, talvez, a dignidade te escapando. Perderá ainda a beleza. Um dia já não será jovem mais. Não desanime, não se entristeça. Mesmo que a dor não te faça em nada melhor.

Abre o peito. Espera. Ama. Ama com o coração simples aqueles que te agradam. Ama. Mesmo que eles não te respondam, mesmo que eles não se interessem. Ama e espera. Porque é com o peito aberto que se reconhece a beleza do mundo, e só com paciência será possível perceber a pequena folha crescendo naquela haste seca – quase morta. Seus cuidados não foram em vão. Espera.

Por isso, menina, abre o peito! Não tenha medo da dor, não tenha medo da espera, ama com o coração aberto. O mundo há de perceber o seu amor, e há de te recompensar. Não se envergonhe da sua tristeza, nem do seu amor. E principalmente, não se envergonhe da sua alegria. Ela é folha que cresce enquanto você cuida de hastes aparentemente estéreis. Abre o peito, menina, e ama. Ama sempre.