Pequena Flor de Laranjeira
Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.Arquivo de paciência
Para deixar de comer chocolate
A guerra parece perdida antes mesmo de iniciada. Todos os dias a velha promessa de, só por hoje, não comer chocolate. Só por hoje. Não se parece com uma promessa tola exatamente porque começa com a humildade de não prometer o que não é possível cumprir. Não me proponho a nunca mais comer chocolate. Me proponho a não comer chocolate por hoje, apenas por hoje.
E sei que não estou sozinha. No mesmo instante que olho para a caixa de bombons ao lado da mesa do trabalho, alguém em outro andar do mesmo prédio olha para a carteira de cigarros, outra, no apartamento em frente, luta contra o desejo de subir na balança mais uma única vez, outros olham para o celular e se debatem com o desejo compulsivo de enviar mais uma mensagem para alguém, outro se segura na cadeira do escritório para não ir ao banheiro lavar a mão mais uma vez, apenas mais uma vez.
E eu e tantos outros sucumbimos. Perdemos a guerra. Rompemos a promessa. Comemos chocolate, fumamos um e outro cigarro, subimos na balança três, quatro vezes ao dia, esfregamos a mão até sangrar, procuramos mais e uma última vez o amor errado que prometemos nunca mais amar. Perdemos.
Mas se a promessa era só por hoje, a derrota também vale apenas por hoje. Com olhar de cachorro sem vergonha dizemos pra nós mesmos que perdemos mais uma vez, mas vamos continuar tentando. Mesmo que todos os dias sejamos subjugados, mesmo que o vício e o desejo se mostre impetuoso, mesmo que nos sintamos fracos e envergonhados, continuaremos tentando.
Porque ao final, se não vencermos nada, pelo menos não seremos derrotados de todo. E nos resta o dia de amanhã, e depois, e depois. E sempre permanecerá um resquício de desejo, uma lembrança de um gosto doce na boca, um restinho de sujeira na mão, a memória de uma rua, de um beijo, a calça jeans que não serve mais mas não nos desfizemos dela, uma última carteira de cigarros guardada no fundo do armário…
Convite para o baile
Um presidente foi deposto. A bolsa de valores caiu no Japão. Um banco internacional foi vendido. Uma amiga mudou de casa. Um bebê saiu do hospital. Uma festa aconteceu. O resultado de um concurso saiu. Outra festa vai acontecer. Foi inaugurado um posto de saúde no novo bairro da cidade. Duplas foram definidas para as próximas eleições municipais. Um amigo escreve dizendo que não estará presente à minha comemoração. Outro estará. Mais outro. Engravida-se. Nasce-se. Morre-se.
Tudo, tudo povoa minha cabeça, tudo faz bater mais forte o coração. Meus olhos fixos na tela do computador, notícias e notícias sendo atualizadas, o mundo girando, acontecendo, fervilhando, girando, girando. E meus olhos atentos, buscando novas atualizações, novas notícias, novidades dos amigos. Novidades. Novidades.
E quando meus olhos descansam da tela percebo a sala ao meu redor. A cortina não saiu do lugar. O pinóquio ainda está sentado, como há meses, no umbral acima da porta. Os quadros e as fotografias representam os mesmos lugares que representavam desde que foram colocados ali. As lembranças trazidas por cada objeto ainda são as mesmas. Dois porquinhos de barro em cima lareira. Galinhas de madeira ciscando uma sujeira que não existe. Uma luminária iluminando cotidianamente meus estudos. Uma cadeira ainda com o pé quebrado. Uma lâmpada ainda queimada.
Não. Nada é tão veloz. Não há notícias e atualizações e novidades e promoções capazes de modificar um milímetro o que acontece no lugar exato onde estou agora. Nada muda. O tempo não passa. Até as flores parecem não murchar nem envelhecer. Eu mesma não envelheço. Mentira que o tempo passa. É só ilusão. Ilusão de movimento.
Porque assim como eu, o mundo uma hora desconecta, desliga o computador, acaba a bateria, dá apagão. E nessa hora o que resta é mundo, esse mundo mesmo que conhecemos, com seus pinóquios e beija-flores e hortências e lâmpadas queimadas e porquinhos de barro sobre a lareira. O que resta é a gente olhando para as estrelas, lembrando do tempo em que apontar para estrela cadente fazia crescer verruga no dedo. O que resta é a gente mesmo, de carne e osso, sem novidades, sem mudanças, sem notificações. O que resta sou e você. E bem que poderíamos fazer um bom baile com isso tudo.
Soluço
A gritaria é enorme e não se sabe mais quem ofende, quem defende. Aos berros ela arranca as roupas do varal, aperta no punho fechado uma camiseta do marido e diz que está tudo duro, cheirando a bife, dias e dias esquecida na lavanderia. O marido lembra que ela tratou mal seus amigos no último encontro, que ela não se esforça, que se acha melhor que todos os outros, que menospreza sua família e que todos percebem isso. Ela pergunta se tem cara de empregada, se ele acha que é isso que uma mulher deve fazer, passar o dia arrumando a bagunça que ele faz, tentando adivinhar o que ele quer para o almoço. É isso?
Ela pega as roupas dele recém passadas sobre a cama e joga no chão. Embaralha, amassa, pisoteia, pergunta se ele quer uma passadeira. Ele sai. Ela corre atrás dele, grita, diz que ninguém a deixa falando sozinha.
Ele pega a chave do carro, bate a porta, canta o pneu. Ela pega um copo, joga no chão. A raiva não passa. Ela joga tudo o que vê no chão. A raiva não passa. Vai até a varanda e espera. Espera o marido, espera a raiva. Espera. O marido volta. Se senta ao lado dela. Ele a abraça, ela tenta se desvencilhar. Ele é mais forte, segura a mulher. Ele a abraça forte. Ele diz no ouvido dela em tom decidido: eu te amo. Ela solta o corpo, se envolve naquele abraço. Ele a aperta mais e sussurra que ela é a mulher mais linda do mundo, a mais linda de todo o mundo. Ela devolve o abraço, soluça.
Eles entram em casa, ela recolhe as roupas no chão, ele busca a vassoura e varre os cacos, ela pergunta o que ele vai querer para o almoço, ele diz que mais tarde vai levá-la para tomar um café. Passeiam, namoram etc.