Foi há alguns dias que perdi, pela primeira vez, uma pessoa importante para mim. Depois que ela se foi ficamos eu e minha família, por dois dias, velando seu corpo. Com 30 anos eu ainda não consigo entender bem do que é feita a morte. Talvez pela minha pouca experiência. Talvez porque não haja muito o que compreender. Eu olhava para minha avó e não entendia que, apesar de seu corpo estar ali, deitado à minha frente, ela já não estava. Ela já não estava.
Para se despedir deste corpo que era mas já não era alguns vieram de longe, de muito longe. E para que fosse possível dizer adeus a este corpo, foi preciso garantir que ele continuasse corpo até o momento da despedida. A funerária fez magias, e lá estava o corpo de minha avó, firme até o último minuto, esperando a família toda reunida para podermos, então, com os nossos corpos nos desperdirmos de seu corpo.
Porque foi assim a vida inteira: é o corpo que abraça, é ele quem beija, é ele quem ama e dá aconchego. E é ele, também, quem se despede. A alma já voa para longe, perdida em mistérios que nem a vida toda nos permite compreender. Mas o corpo está ali, para ser abraçado, acariciado, e por fim, despedido.
É o corpo também que gera outro corpo. Não há outro meio. É o encontro dos corpos que permite o milagre da vida. Podem me dizer dos métodos artificiais de reprodução, de bebês de proveta, de clônes e o que seja. Só o corpo, pelo meio que for, pode gerar outro corpo. E só o corpo pode carregar uma alma que comunica. Depois, bom, depois é mistério. Depois restamos nós, chorosos, abraçados, pedindo aos deuses que nos confortem pela nossa perda, que nos ajudem a viver sem a presença daqueles corpos que amamos por toda a vida e que não existem mais.
Diante do corpo já sem vida de minha avó me pus a lembrar da última vez que a vi. Ela estava sentada no sofá de sua casa, assistindo uma missa pela televisão, e sorria pela minha visita. Eu peguei sua mão e contei a ela que o bebê que estou esperando é uma menina, e que se chamará Maria Eduarda. Ela sorriu de novo, apertou minha mão e disse que aquele era um lindo nome.
Me lembrei também que uns dias depois foi Natal, e pela primeira vez ela não esteve presente, porque já estava cansada e não aguentava acompanhar as festividades de minha família. Eu não liguei e nem lhe desejei Feliz Natal. Eu estive ausente. E não posso, por isso, saber se ela sorria, se ela assistia à missa, se ela dormia. Eu não sei. Eu não estava ali. Nossos corpos estavam distantes e não se abraçaram por ocasião do Natal.
Não, eu não sinto culpa por isso. Há tanto que podíamos ter feito e não fizemos. E se formos contabilizar a vida vira um inferno. Mas aprendi, diante do corpo inerte de minha vó, aquele que eu acariciava enquanto lágrimas gordas escorriam de meus olhos, que é o corpo que abraça, é ele quem cuida, é ele quem ama, e que não vale pedir aos deuses que cuidem de nós. Essa tarefa é nossa, é nosso dever abraçar quem amamos, pegar na sua mão e lhes contar as novidades. O resto é silêncio e vaidade.
Lindo!
Você nos ajuda a transformar algo nebuloso e pesado em luz e esperança…