Pequena Flor de Laranjeira

Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.

Arquivo de Julho, 2012

Fico à espera, de Davide Cali

CALI, Davide. Fico à espera. Ilus. Serge Bloch. Tradução Marcos Siscar. São Paulo, Cosac Naify, 2007. 56 páginas. Colorido.

Na Livraria Cultura é bem capaz que você só encontre este livro na seção de infantis. Se você é daqueles que passa ao largo desta seção, sinto dizer, vai perder a chance de conhecer um dos livros mais delicados que já li em toda minha vida. “Fico à espera” fala sobre o tempo e a vida – sobre o fio da vida. O novelo de lã sendo desenrolado é a metáfora presente em todas as páginas do livro e é a partir dela que o autor trabalha cada uma das fases da vida: desde a infância, passando pela adolescência e juventude até a velhice.

O personagem principal não tem nome. E não tem porque poderia se chamar Adriana, Gustavo, Regina ou Carolina. Podia ser eu, podia ser você. E podia ser você porque desde pequeno você espera: espera para nascer, espera a chuva passar, espera o bolo assar no forno, espera as férias, espera crescer, espera encontrar a pessoa que você ama. Bom, e depois que encontra a pessoa que ama, meu amigo, a espera só piora. É hora então de esperar o outro pedir desculpas, voltar de viagem, crochetar a roupinha do bebê. Depois do bebê, aí sim,  a vida vira uma odisseia. E a espera continua: pelas férias, pelas conquistas dos filhos, pelos netos.

É então que se percebe que a vida passou de tanta espera, e já se está velho, e de tão velho resta pouco o que esperar: o fim da doença, a visita dos filhos, o funeral. E nesse momento, em que descrevo essa cena, me vejo de olhos marejados de novo. Nem estou lendo o livro, só estou me lembrando dele, e me emociono. Fico à espera é assim, de fazer chorar, chorar por nada, chorar de lembrar. Sem dúvida alguma é um livro essencial. Não se deixe enganar pelo catálogo, ele deve ser lido por qualquer um, indepedente da idade.

Eu te amo

Meu amor, me desculpe, hoje não tive tempo. Não tive tempo de te ligar. Sei que você vai dizer que eu poderia pelo menos ter te mandado um sms, ter respondido suas mensagens no chat, poderia ter comentado algo que você escreveu no feici. Vi que outros comentaram, que muitos outros curtiram. Eu vi, mas não comentei. Me desculpe.

Esse mundo, meu amor, é muito demandante. O telefone não pára de tocar, e-mails transbordam do meu inbox, meu chefe me chama a cada cinco minutos. Quando volto pra minha mesa, tem um recado da gerente do banco dizendo que bloquearam nossa senha por suspeita de clonagem, preciso ligar urgente pra ela. Ligo urgente, ela está em outra ligação, outro caso de clonagem, certamente, sua assistente pede pra eu esperar um pouco na linha, ela está por dentro do nosso caso, e também me diz que é bastante urgente. Fico assustado. Espero.

Não preciso nem te dizer que enquanto espero na linha por uns 20 minutos meu chefe me chama de novo, mais nove e-mails, aquilo que você postou no feici já foi lá pra baixo na taimelaine, a secretária coloca um bilhete na minha mesa: “A diretora da escola do seu filho ligou de novo”. Tento me lembrar do que se trata, nada me vem à mente. Não estamos em férias escolares?

Alguém do outro lado da linha volta a falar: “Oi, a gerente já vai falar com você, estou transferindo”. E transfere. E ouço aquela musiquinha por uma eternidade. O chefe vem em pessoa à minha mesa, pede que eu desligue o telefone porque ele precisa de mim agora. A gerente entra na linha e eu peço desculpas. Ligo em seguida.

Na sala do chefe, ele me pergunta se eu fiquei sabendo da reestreia da peça do Nanini. Digo que sim, ele me pergunta porque não o avisei. Eu não me lembro. Diz, então, que já não há mais ingressos, e me pede, sorridente, que eu consiga dois pares junto aos meus contatos. E lembra que foi por isso que me contratou, pelos bons contatos.

Volto à minha mesa, digito o número que está no papel à minha frente e quem atende é a diretora. Céus, eu queria falar com a gerente. E nisso, uma janela com o seu nome piscando na minha frente. Você me manda flores e beijos, carinhas sorridentes pelo chat. Por que a diretora não ligou pra você? Ouço a mulher que fala sobre a promoção da Colônia de Férias, ela se lembrou que nosso filho adora acampar e por isso achou de suma importância que o inscrevêssemos  para as atividades. Sim, é a diretora quem faz isso. Não era a sua assistente. E ela me liga certamente porque não sabe que é você quem decide sobre essas coisas. Já deixei a secretária de sobreaviso: da próxima vez que ligarem da escola, é para passarem o seu número.

Desligo o telefone, tento novamente a gerente. A assistente atende, pede para esperar só um minutinho, eu reclamo, e ela afirma que dessa vez vai ser só um minutinho mesmo. Num instante, estou falando com a gerente. Ela me pergunta como estou, diz que faz tempo que não apareço, ops, que nós não aparecemos no banco. Eu digo que está tudo muito corrido. E o problema com a senha, o que foi? Ah, não se preocupe, ela responde, já resolvemos tudo. Aconteceu um erro no sistema e tivemos que bloquear diversas senhas. Como vocês fazem muitas transações pela internet, resolvemos ligar para explicar o ocorrido. E ela explica todo o processo e o procedimento que foi feito. E me afirma que está tudo sob controle e que não teremos problema algum com nossa conta.

Desligo o telefone e entro no nosso chat. A essa altura você já quebrou corações, estraçalhou flores, disse que me deixaria trabalhar, disse que pelo menos eu poderia falar que estava ocupado, disse que me amava, disse que me odiava. Disse que estava saindo e disse que iria passear com nosso filho. Disse que ele está grande. Disse que ele chegou ao seu lado e queria também falar comigo. Disse que disse a ele que o papai não existe, que ele é uma imaginação. Sim, você disse que disse isso. Eu duvido, mas de todo modo, me deixou triste. Sei que era isso que você queria.

Nesse instante, vou até o banheiro e tento te ligar. Você não atende. É claro que você não atende. Você está triste. Você está brava. Ligo de novo. De novo você não atende. Volto pra minha mesa e o mundo já deu quatro voltas. De novo o chefe, de novo o telefone. Preciso procurar por ingressos para o Nanini. E sim, este e-mail é para te dizer que não consegui falar com você e estou indo agora atrás do Sílvio, desconfio que ele tenha ingressos vips para o Nanini. Não sei a que horas chego em casa. Eu te amo.

Uma pequena estante: Livros que eu leio

Sou daquelas que adoro saber o que cada um está lendo no momento: seja pescoçando no metrô os livros que outros lêem, seja vasculhando as estantes das casas de meus amigos. Por isso, resolvi abrir aqui a minha estante: livros que estou lendo ou que já li. São pequenas resenhas, num esforço de exercitar a leitura, a escrita e o senso crítico. E também, no desejo de compartilhar aquilo que eu gostei ou, que não gostei. Às vezes me pego odiando aquilo que todo mundo achou o máximo. Tudo bem, nunca me achei muito dentro do padrão mesmo. Mas quem sabe aqui eu não consiga compartilhar com vocês e trocar ideias e sensações, entender o porquê se gosta ou não se gosta de tal ou tal livro, de tal ou tal autor.

Essa é a minha estante, sentem-se, fiquem à vontade. Dêem pitaco, me digam se estou enganada. Vamos transgredir!

Memórias de um sobrevivente – Luiz Alberto Mendes

MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 417 páginas.

Memórias de um sobrevivente é uma autobiografia de Luiz Alberto Mendes. Digo autobiografia num duplo sentido: porque foi escrita pelo próprio autor e também porque se difere das biografias baseadas em documentos e registros. Como o próprio título diz, é uma biografia baseada em “memórias”. E as memórias de Luis Alberto voltam-se para uma experiência em que ele se considera um sobrevivente: sobrevivente de uma história permeada por dores extremas.

No momento em que escreve suas memórias, Luiz Alberto se encontra preso já há 20 anos. A narrativa se mostra, assim, como uma visitação do autor aos momentos críticos de sua vida, não num desejo de argumentar os motivos que o levaram a trilhar aquela vida que ele trilhou até ser preso, mas sim, num esforço de compreender, ele mesmo, o que o levou até ali.

O livro tem início na infância de Luizinho – antes até – ele conta como nasceu sem ter sido muito desejado pelos seus pais e avós. Mesmo assim, Luis demonstra uma relação de afeto e carinho profundo pela mãe, ao contrário do pai, sempre bêbado e sempre violento. Suas primeiras experiências com a violência começam ali, dentro de casa, na relação tensa que tem com o pai e as nas disputas pelo carinho, cuidado e atenção da mãe.

A história de Luiz não parece ser assim tão diferente dos demais que um dia conviveram com ele em quadrilhas de assalto a banco ou rodas de maconha pelo centro de São Paulo. O que diferencia a história de Luis é a própria narrativa, seu desejo de visitar os lugares da memórias e contá-las a um leitor – por mais impossível que esse leitor lhe pareça.

O autor narra de forma detalhada a experiência que teve em instituições de controle quando adolescente, os diversos desentendimentos com a polícia, a tortura corporal sofrida, o desejo de vingança, o sadismo presente nas celas escuras das delegacias às vesperas do golpe militar. Narra suas experiências com drogas, a adrenalina do ronco do motor na saída de um assalto, as conquistas sexuais, as saudades sempre eternas da mãe, o desejo de se reconciliar com o pai.

A crueldade sempre presente na vida desses adolescentes – dele e de seus amigos – permeia o texto: em certos momentos, a crueldade dos policiais é criticada de forma radical, por vezes, no entanto, o narrador parece se esquecer desta mesma crueldade e parte ele próprio para a violência. Violência sempre presente, a todo momento presente, no corpo, no texto, na história.

A maior violência, no entanto, parece ser a solidão. E não num sentido romântico – ficar por seis meses numa cela-forte sem luz nem companhia não tem nada de romântico. O frio, a fome e a ausência de qualquer cuidado se sobrepõe aos maltratos físicos extremos que o narrador sofreu em outros momentos de sua vida.

É ali, então, quando se encontrava sozinho e bem perto da loucura, que o narrador se encontra com o universo dos livros. Sem muito conhecimento, Luiz se debruça sobre eles e faz deles a sua liberdade. Torna-se um autodidata e é assim, na companhia dos livros e dos amigos que também os amavam, que o autor consegue “pagar” seus anos de pena.

Memórias de um sobrevivente é um livro escrito a partir da prisão e traz consigo todos os desafios que esse tipo de literatura carrega ao colocar o leitor no lugar desconfortável de ter que escolher entre confiar naquilo que está sendo dito por um autor que implora por qualquer migalha de confiança.