Pequena Flor de Laranjeira
Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.Arquivo de desejo
Pirata e Capitano
A televisão, na sala, exibe desenhos infantis: uma família de porcos ou uma sala de bebês e robôs músicos ou uma menina pirata e um menino piloto de avião desbravando ilhas desconhecidas. A mãe sentada no sofá, as crianças em volta, uma enrolada num braço, outra no outro. Enquanto a pirata briga com um papagaio caolho, a menina vira para a mãe e pergunta do que ela tem medo. Tenho medo de ficar doente, a mãe responde. A menina então diz que se a mãe ficar doente, ela a leva para o hospital. O menino, no outro braço, não termina ainda muito bem as frases e as palavras, é ele quem diz que tem medo de lobo, de lobo, não, do lobo. A menina, então, concorda. Ela também tem medo do lobo. “Só do lobo?” a mãe pergunta. É, só do lobo. E voltam a ver o desenho, quando o papagaio caolho empurra as crianças pela prancha até quase alcançarem o mar. E ficam em silêncio. A mãe acaricia as cabeças que se aconchegam no seu colo. Pensa no medo que tem. Medo de doença, medo de morte, medo de violência, medo do mal, medo do bem. Medo que esses filhos andem, um dia, por essa prancha que os empurra para a morte. Mas a pirata, quando atinge o mar, se transforma em sereia, em peixe, em pássaro, e nada acontece. A mãe pensa, então, que sim, tudo poderia ser assim. O desenho termina, é hora de dormir. A mãe beija os filhos e pede que seja assim, que de hoje para sempre a prancha não seja, jamais, o fim.
Prece à chuva, ou ao vento, ou à terra
Certa vez aprendi que uma prece deve começar com um louvor. É preciso reconhecer a grandeza daquele a quem se dirige. Em seguida, é preciso demonstrar a própria insignificância, a pequenez em que se encontra. Depois, quem sabe, e se for mesmo muito preciso, é que se fazem os pedidos. Há os que acreditam que nada deve ser pedido. Nada. Por fim, é necessário agradecer, sempre, pois um coração grato é o que garante acesso aos pedidos que às vezes nem foram feitos. Antes de terminar a prece, no entanto, bom é que se reconheça novamente a grandeza de quem se dirige, e o louve. E então, só então, dizemos amém.
Pois que essa estrutura de prece dificulta muito as coisas. Primeiro porque ainda não aprendi a louvar as coisas pequenas. Como me dirigir ao ramo que nasce na haste da hortelã, esse ramo que me enche de esperanças, honrando e louvando sua grandeza? Como louvar uma haste tão frágil que se quebra porque cresce e não suporta o próprio peso? Não, eu não aprendi a louvar as coisas pequenas. Ainda assim, é essa haste, frágil e quebradiça, quem me ajuda a olhar para o mundo de uma forma mais perfumada.
E então, em seguida, é preciso reconhecer a minha pequenez. Não, eu não sou pequena diante de tudo o que amo. Sou é grande demais. Desajeitada. Me falta a delicadeza. Andar de elefante que há tempos me acompanha. Meu defeito é esse, é sobrar, é vazar pelas bordas, é não caber. É aguar demais. É olhar muitas vezes. É repetir o mesmo, sempre e sempre.
Quanto aos pedidos, paciência. A precisão é demais e não é de bom tom se dar ao luxo de deixá-los de lado. Peçamos sempre. Por favor, peçam por mim também.
Chegamos, por fim, aos agradecimentos. E fico então perdida frente à natureza que me circunda. Olho para a chuva, para o vento, para essas coisas – essas, sim, poderosas – e tento agradecer sua presença generosa em nossas vidas. Mas me resta uma dúvida, colada à pele, de que nem o vento, nem a chuva, nem mesmo a haste da hortelã, nada disso é capaz de me ouvir. E meus agradecimentos seriam bajulações vazias, sem sentido de existência. Como agradecer à terra o amor que vem de meus amigos? Como agradecer aos céus o alimento do dia a dia? Como agradecer à chuva o cheiro que ela espalha pela terra e me enche as narinas e os sonhos? Seria preciso aprender a língua da natureza, mas língua é coisa de homens, e natureza não se comunica.
Resto, então, perdida, necessitada de uma prece bem rezada e sem um santo que me auxilie. Sem um terço que me oriente. Com desejos e sonhos na fila de espera, com um coração carregado de pedidos a agradecimentos. Olhando para a chuva que chove ou chora. Ouvindo o vento que uiva ou canta. Aguando plantas que crescem e me alimentam dia a dia. Balbucio, trêmulo, um amém inseguro e duvidoso. Amém.
Pedido diante de uma pilha de papéis
Por favor, me tragam a Maria Bethânia. Tenho dor nas costas e um profundo mau humor. Tragam a Maria Bethânia. A noite se promete longa, com muitos e muitos papéis à minha frente, um calor daqueles, os bichos que me mordem, me picam. Por favor, a Maria Bethânia. Não importa de qual época. Não importa o acompanhamento. Quero a Maria Bethânia cantando, cantando, cantando. Quero a Maria Bethânia fechando os olhos, apertando as mãos, alisando seu próprio cabelo. Tragam a Maria Bethânia.
Nada me pára no estômago. Não aguento mais beber água ou coca cola. Por isso, a Maria Bethânia. Preciso de algo forte, algo que embriague, que tonteie. Maria Bethânia. Preciso de estímulo e café não me serve. Preciso de carinho, de aconchego. Preciso alguém dizendo coisas que eu gostaria de dizer. Preciso alguém tocando a ferida, cutucando a ferida, dizendo coisas que eu não teria coragem de dizer.
Não adianta mais ninguém. Se não for a Maria Bethânia, quero que o mundo se exploda. Nada de Gal, nada de Mutantes, Vanessa da Matta, Cartola, Elza Soares. Não, nenhum me serve. Quero a Maria Bethânia. Não me venham com o Chico, não me venham com Simonal. Quero companhia, preciso de estar perto de gente, mas agora, justo agora, só quero a Maria Bethânia.
O dia já escureceu lá fora, a noite parece agradável, e aqui, diante de meus muitos papéis, uma sede que não passa, um calor que não cede, um sufoco que não esquenta. Vem, Maria Bethânia, vem me ajudar a vencer a mudice, essa falta de fala, essa falta de sono, essa falta de desejo. Vem me entoar cantigas, declamar poesias. Vem me lembrar de lugares que ando esquecida, paisagens encobertas por tantos e tantos papéis. Vem.
Vem.
Por favor, me tragam a Maria Bethânia.
Para deixar de comer chocolate
A guerra parece perdida antes mesmo de iniciada. Todos os dias a velha promessa de, só por hoje, não comer chocolate. Só por hoje. Não se parece com uma promessa tola exatamente porque começa com a humildade de não prometer o que não é possível cumprir. Não me proponho a nunca mais comer chocolate. Me proponho a não comer chocolate por hoje, apenas por hoje.
E sei que não estou sozinha. No mesmo instante que olho para a caixa de bombons ao lado da mesa do trabalho, alguém em outro andar do mesmo prédio olha para a carteira de cigarros, outra, no apartamento em frente, luta contra o desejo de subir na balança mais uma única vez, outros olham para o celular e se debatem com o desejo compulsivo de enviar mais uma mensagem para alguém, outro se segura na cadeira do escritório para não ir ao banheiro lavar a mão mais uma vez, apenas mais uma vez.
E eu e tantos outros sucumbimos. Perdemos a guerra. Rompemos a promessa. Comemos chocolate, fumamos um e outro cigarro, subimos na balança três, quatro vezes ao dia, esfregamos a mão até sangrar, procuramos mais e uma última vez o amor errado que prometemos nunca mais amar. Perdemos.
Mas se a promessa era só por hoje, a derrota também vale apenas por hoje. Com olhar de cachorro sem vergonha dizemos pra nós mesmos que perdemos mais uma vez, mas vamos continuar tentando. Mesmo que todos os dias sejamos subjugados, mesmo que o vício e o desejo se mostre impetuoso, mesmo que nos sintamos fracos e envergonhados, continuaremos tentando.
Porque ao final, se não vencermos nada, pelo menos não seremos derrotados de todo. E nos resta o dia de amanhã, e depois, e depois. E sempre permanecerá um resquício de desejo, uma lembrança de um gosto doce na boca, um restinho de sujeira na mão, a memória de uma rua, de um beijo, a calça jeans que não serve mais mas não nos desfizemos dela, uma última carteira de cigarros guardada no fundo do armário…
Garota Fantástico
Nem a mais bela escapa: chega sempre um dia em que você corre para atender o telefone e na primeira vez é sua vó, na segunda, a gerente do banco, na terceira perguntam se é da farmácia. O resto do dia é silêncio.
A amante que eu gostaria de ser
É inútil pensar no que eu gostaria que você fosse. Você simplesmente é. Às vezes realiza meus desejos, às vezes me deixa à mingua. Por vezes te amo inteiro, por vezes te odeio por completo. Num segundo e noutro. É inútil pensar em qualquer coisa em você que fosse um milímetro diferente. Em mim, no entanto, percebo uma eternidade de vários quilômetros repletos de desejos de mudança.
Se eu pudesse, por pelo menos um instante, duvidaria menos. Você então não precisaria lidar cotidianamente com a minha constante variação de humor. Eu te amaria, simplesmente, e isso bastaria. Você dormiria e acordaria todos os dias na certeza do meu amor. Quando então você me perguntasse se eu ainda te amo, eu não veria nos seus olhos uma tristeza de quem brinca com toda a seriedade.
Há muito que poderia ser mudado. Para ser a amante que eu gostaria de ser eu deveria aprender a controlar menos. Não se trata de ciúmes, mas de algo muito mais devastador. Eu deveria não arquear as sombrancelhas num olhar explicitamente superior quando você expõe uma opinião radicalmente contrária à minha. Eu seria uma amante melhor se te deixasse livre para ser e para querer ser quem você quisesse.
Há, ainda, as pequenas mudanças no dia a dia. A amante que eu gostaria de ser é carinhosa, implora seu amor e carinho a cada minuto ao invés de se calar num canto e se ressentir, silenciosamente, da sua falta de atenção. Ela é daquelas que te abraça de noite e não desgruda. Faça calor, frio, ventania. Ela manda mensagens dizendo que sente saudades e que espera de um jeito ansioso o seu retorno. Ela toma cinco banhos ao dia só para estar fresca e cheirosa toda vez que você se aproxima.
A amante que eu gostaria de ser não tem medo de gastar dinheiro, não vasculha seus pensamentos para descobrir a sua próxima surpresa, não se cala quando você ainda quer conversar, não apaga a luz enquanto você ainda está chorando.
Essa amante, certamente, é mais verdadeira. Não diz que sente o que não sente, nem diz que não sente o que lhe arranca pedaços. Ela espalha seus presentes pela casa para que em cada canto possa encontrar a sua lembrança. Ela cuida dos seus pertences como se pertencessem a ela mesma.
A amante que eu gostaria de ser não vive alheia, distante num mundo negado a você. Ela te convida a cada instante a entrar na sua história, mostra os caminhos, te conta segredos, inventa passagens secretas, te oferece o cargo de general.
Não faço ideia se um dia você já sonhou com essa amante que eu sonho cotidianamente. Talvez você não queira mudar um milímetro do que eu sou. Talvez você me queira, às vezes, tão distante quanto distante estou desta que eu gostaria de ser. Talvez você me queira apenas pequena enquanto nos seus braços eu sonho sonhos cheios de grandiosidade.