Pequena Flor de Laranjeira

Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.

Arquivo de casa

CTA #3 (Call to action)

Dia desses você ficou bravo porque eu te sugeri comprar dólar. Você sempre não entende nada mesmo. Era preciso dar um comando, chamar à ação, call to action. Achei que poderia ser uma boa chamada, do tipo, compre dólar. Mas você achou péssimo. Então agora resolvi dar um outro comando: beba água! Pode ser esse?  

Se for aqui em casa, antes de beber água é preciso sempre verificar se tem água filtrada no filtro. Filtro vazio é clássico de uma casa ocupada, movimentada, desatenta. Todas as vezes que bebo água dou uma olhada: será que é preciso encher o filtro? Será que vai dar tempo de filtrar a água no tempo exato em que todos chegarão sedentos? E eu vou lá, encho o copo do liquidificador, que já fica, de precaução, ao lado do filtro de água, e despejo ali, no compartimento de cima, onde estão as velas, por onde passará a água, até que ela chegue no lugar de onde você vai tirar a água, fresquinha, no copo, para matar sua sede. Filtro de água cheio de água é dádiva, é cuidado, é amor. Mas quase ninguém percebe isso. Percebo eu. Perceba você. Beba água, e pode, por enquanto, esquecer os dólares. Deixe para depois.

CTA #1

Era para ser um convite, então vou te fazer um convite: vem comigo ver ferver o leite. E tem que olhar mesmo, o momento exato em que ele ferve, dizem, é quando você não está olhando. Então tem que olhar. Não pode parar de olhar. Mesmo que demore, mesmo que não aconteça.

Mentira, vai acontecer. Olha bem e ele ferve. E antes de ferver, se o leite estiver gordo, vai formar uma nata, que é uma manta sobre o leite, uma manta que movimenta, que segura as bolhas que estão formando. Sabe o que eu penso quando olho para o leite fervendo? Eu penso na minha avó, na pele debaixo do braço dela, que era fininha, molenga e macia. Eu adorava apertar o braço da minha avó. O leite fervendo me lembra a pele de minha avó. Pele que será a minha um dia. Pele de leite.

E depois, quando o calor atinge o ponto, as bolhas rompem a manta, rompem a pele, é uma avalanche. Desliga o fogo, meu amor, essa é a hora de desligar o fogo. Em pouco tempo tudo volta ao normal, é só deixar o leite esfriar. A gente tira a nata e faz iogurte. Você vem?

O mundo da rua

Maria, não saia na rua. Por favor, não saia. Lá fora os homens andam cada vez mais raivosos. Não saia. Lá fora falta água, sobram enganos, há remendos nas ruas, nas pessoas. Ano passado prometeram asfalto novo. Asfaltaram. E agora, Maria, há de novo os buracos. Buracos nas ruas. Buracos nas almas. Prometeram de novo, mas dizem que agora o povo não acredita mais. Almas remendadas.

E talvez sejam esses buracos, ou a falta de chuva, ou o excesso de enganos, talvez seja isso, Maria, que faça os homens andarem de olhos tortos, à procura de erros, à procura de cansaços. E é na rua, Maria, que esses homens se encontram, vociferam, se ensurdecem. Não saia. Lá os homens levantam placas, derrubam uns aos outros, mentem. Lá os homens empunham armas, exalam suores, procuram a morte. É na rua, Maria, que as pessoas se acreditam diferentes, excelentes, usando seus melhores perfumes. E é ali que se gritam as diferenças, se proclamam direitos, se criam privilégios.

Na rua, Maria, tem o vento, tem a fumaça do carro, tem a criança que passa correndo na bicicleta. Não saia, Maria, por favor, não saia. Fique aqui comigo. Aqui dentro tem bolinho de chuva, tem história de bicho papão. Aqui tem música de Tom Jobim, e eu posso te ler um verso do Drummond. Aqui podemos receber seus amiguinhos, fazer guerra de água, brincar de bolha de sabão.

Aqui, Maria, somos só eu e você. Aqui não tem o diferente. Aqui não tem o perigo. Aqui, Maria, você inventa seu próprio idioma, define seus limites. Aqui é você quem cria seus horários, determina quem será o rei da sua história de princesa. Aqui só entra quem você quiser e jamais você precisará lidar com os males que habitam o lado de fora. Fique aqui comigo. Seremos eu e você.

Mas se um dia esse meu pedido lhe soar absurdo, se os limites de nossa casa se tornarem tão estreitos a ponto de você andar esbarrando nos móveis de seu quarto, se sair se tornar algo inevitável, cuide-se, Maria. Os homens são maus, a rua anda cheia de buracos, qualquer batida de vento pode lhe causar um resfriado, e eu não estarei lá para cuidar de você. Por isso, pense bem. Pense ainda melhor e fique comigo, Maria.

Vira lata

Ainda me lembro de nosso último encontro. Suas sombrancelhas arqueadas. Sua voz áspera. Suas costas para mim. Ainda era inverno, ainda fazia frio. Suas costas para mim. Você na sala de jantar, você no centro, você gargalhando. Eu ao longe, de longe, sem saber o que te alegrava tanto, o que te alegra tanto. Eu ao longe.

Aos poucos, vão trazendo notícias suas. Um novo emprego. Casa nova. Nova namorada. Pergunto por detalhes, não por curiosidade, mais para manter o assunto e chegar, talvez, ao que meu coração deseja saber. Mas nunca sei, nunca sei se você perguntou por mim. Nunca sei se você quer saber de mim.

E eu com tantas notícias, o coração repleto de novidades. Voltou a chover e o jardim de minha casa ganhou novamente a cor de seus olhos. Abriu uma loja de queijos no quarteirão de baixo de casa, parece que os sócios são mineiros, mineiros como nós. Descobri um novo cantor, desses que a letra corre antes da música, mas que fala muito do mais do mar que das montanhas que preenchem cotidianamente a nossa respiração.

Não. Não te direi nada disso. Não te direi ainda que Maria Eduarda já estica os pés e os força para ficar em pé. Ela, que ainda precisa tanto de nós, já dá sinais de querer o mundo, assim como nós o queremos. Não te direi que sinto saudades, nem que sofro pela sua ausência declarada. Não deixarei você saber que minha raiva é cortina sobre o palco, que se abre e some ao dar lugar a cada novo espetáculo.

É melhor que você não saiba do meu amor vira lata, é melhor que você não desconfie que eu conto os dias em que não te vejo, que cronometro os metros que nos distanciam. Que as coisas fiquem assim, que você também se lembre da minha voz áspera e não saiba da doçura que ela traz por detrás. Que você também pense que meu amor é devotado a outros, e que eu pouco pergunto de você. Que você não saiba do quarto sempre arrumado que tenho em minha casa, esperando pelo dia em que você vai chegar. E nesse dia, mesmo que eu ainda me lembre de suas costas voltadas para mim, vamos nos sentar à mesa, vou te pedir para passar o café, você vai me perguntar se a jaboticabeira já começou a florescer etc etc etc.