Pequena Flor de Laranjeira

Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.

Arquivo de espera

Une petite liste

Desaprendemos a esperar. O celular e seus milhares de aplicativos e conectividades não nos permite mais sentar e olhar ao redor na sala de espera do dentista. Mas isso não tem lá grande importância, afinal, antes dos celulares, havia as revistas, amassadas de tanto passadas e repassadas sem um olhar que realmente se interessasse. O mesmo fazemos hoje com as páginas da internet: nosso dedo desliza pela tela não em busca de informações, mas à procura de algo que esvazie o tempo da espera. Olhamos mas não vemos. Lemos mas não entendemos. Procuramos e não queremos encontrar nada.

Não, os tempos não são piores hoje. Nós somos os mesmos. Sempre somos os mesmos. E não sabemos esperar. Precisamos preencher o tempo, povoar a mente, enganar o coração. Mas aprender é preciso, é sempre preciso, e pode ser, também, útil para alguma coisa. Pensei então numa lista de espera, pequena, afinal, aprender a esperar é tarefa grave e não se presta a grandes conselhos, mas antes em desafios profundos, destes que revolvem a alma.

Para aprender a esperar:

  1. Plante algo e vigie seu crescimento. No primeiro dia a terra continua a mesma. No segundo, o mesmo. No terceiro, ainda. No quarto talvez você perceba um pequeno ponto verde aparecendo na terra, um verde duvidoso. Dali em diante a certeza cresce, a esperança desponta, a terra se transforma em movimento e a vida resplandece. É certo que depende da qualidade da planta escolhida. Para quem é iniciante na arte da espera, plante uma horta: é dos crescimentos mais rápidos! Se você já é iniciado ou veterano na arte da espera, saberá apreciar o crescimento de uma árvore, que acompanha a espera das estações.
  2. Escolha um momento do dia como um tempo sagrado. O entardecer geralmente se encaixa bem a esses exercícios de espera. Espere pelas seis da tarde, por exemplo. E comece a se preparar para sua chegada no mínimo meia hora antes. Sinta o entardecer, tente perceber o momento em que ele se aproxima, se aquiete, pare para olhar para o horizonte, onde quer que você esteja. Mesmo que o entardecer se mostre numa vidraça amarelada no edifício à frente da sua janela.
  3. Dia desses li em algum lugar que num momento de ansiedade, é preciso fazer algo que nos acalme. Seria fácil se soubéssemos, de antemão, o que nos acalma. Não, não lançamos mão de calmantes. Mas podemos ir em busca de outras ilusões. Entendi, então, que descobrir o que nos acalma é um exercício de espera. E como descobrir um remédio efetivo, que tenha efeito em todas, ou quase todas as situações? Talvez o melhor conselho para alcançar tamanha descoberta seja o de diminuir o volume das vozes, abrir mão da urgência dos desejos, afagar os sonhos antigos e ainda presentes, cavoucar lembranças nas paredes da memória, sentir o coração batendo, pulsando, e tentar identificar o cheiro que nos rodeia nesse momento, ou a cor que preenche os nossos olhos mais internos, ou a melodia ou o timbre de voz que nos sobrevêm no vento. Talvez o que nos acalme tenha exatamente esse tom, esse odor e esse timbre.
  4. Trabalhe. E não digo trabalhar para ganhar dinheiro ou cumprir obrigações. Mas para lembrar que sempre é possível e necessário construir algo. Seja o que for. Seja da forma que for. É sobre esse trabalho que construímos as teias da espera, é ele quem nos dá a base e a medida do que somos enquanto tentamos chegar em algum lugar. Mesmo que esse lugar seja apenas e simplesmente a descoberta.
  5. Por fim, não evite a espera. Enfrente, abra o peito. E ame, sempre.

À espera

É preciso arrumar a casa. Por isso ontem comprei cravos e coloquei num vaso no centro da sala. Por isso arranquei os matos e ervas daninhas que empesteam a horta, separei as hastes ainda fortes da cebolinha, cortei as flores do manjericão. Por isso voltei a jogar quantidades de água generosas sobre todos os vasos da casa. Por isso vieram técnicos, pintores, eletricistas, jardineiros. Por isso joguei fora coisas antigas, coisas velhas, coisas inúteis. Tudo isso porque é preciso arrumar a casa.

E é preciso arrumá-la porque esperamos visitas. Para ser mais exata com as palavras, esperamos uma visita em especial, dessas que chegam com ares de boas vindas e vão ficando, ficando, se tornam moradoras e se alojam nos quartos e nas entranhas da casa e de seus antigos moradores. Dessas que trazem consigo uma ventania, mudam a rotina, impõem silêncios, exigem atenção.

É por ela que é preciso arrumar a casa. É por ela os cravos no centro da sala. É por ela os armários agora vazios, cheios de espaços para serem preenchidos por uma nova vida, por uma nova história. É por ela que ampliamos os nossos horizontes antes estreitos, é por ela que renovamos uma esperança no presente. É por ela que relembramos os mortos e celebramos uma vida prenha de promessas.

E como toda visita, essa também chega em momento inoportuno, sem aviso exato, nem data nem hora marcada. Talvez se tenha que deixar o copo sujo no meio da pia, um texto por terminar, uma lembrança por cerzir. Há tanto o que fazer que é certo que não dará tempo. Provas a serem corrigidas, artigos elaborados, projetos definidos. A espera por essa visita se faz presente. A qualquer momento. E vamos entendendo que é assim que esse tipo de visita chega. A qualquer momento. E vamos entendendo que o copo envolto de sabão e não ensaboado se tornará a tônica da vida daqui para frente, que sempre restará uma prova não corrigida no final do pacote sobre a mesa, que esqueceremos a consulta médica marcada para às três da tarde.

E aprenderemos, então, que a água é mais importante que o copo que a recolhe, que o ensinamento vale mais que a correção, que a vida é o que sobrevive na memória, e que as flores nos ensinam a esperar com alegria por aqueles que estão por chegar. Por isso a casa arrumada, quase toda arrumada. Por isso os cravos. Por isso os espaços abertos. Tudo isso para encher de alegria os momentos de espera. A espera pela visita que está para chegar.

Redemoinho

Não, não. É mentira que o tempo voa. Não para quem tem saudades. Não para quem tece, diariamente, fios de espera. Há anos observo minha cerejeira, nos fundo de casa, sozinha no jardim. Levou tempos para fazer brotar uma flor. Uma única flor, pequenina. Nada passa depressa demais. O que envelhece é o seu celular, o modelo do seu carro novo. Minha vida não envelhece.

Encontro velhos conhecidos e ouço que eles me conheceram quando eu era assim, desse tamaninho. Sussuram então, no meu ouvido, que estão ficando velhos. Eu respondo que não. Eu respondo que somos todos, ainda, desse tamaninho. E a vida é tão lenta, e a vida é tão boa. E eu me contorço de saudades, e eu me preencho de espera.

Encontro, também, aqueles que sempre foram menores que eu. Eles eram os pequeninos. Estão hoje maiores, no tamanho e na coragem. Nos abraçamos e lembramos de quando eles eram apenas meus alunos. Agora não são mais. Estamos todos no meio do furacão, carregando sonhos e saudades. Tecendo a espera por aqueles que sempre serão mais pequeninos que a gente.

Não. O tempo não voa. O tempo, mesmo, ele nem existe. O que existe somos nós, corajosos e valentes frente à velocidade com que o mundo se movimenta, frente aos desejos imperiosos de estar aqui e estar lá, de ser um e ser mil. O que existe são pequeninos que crescem e nos ultrapassam, sorriem para nós, nos acenam de longe. E nos fazem lembrar que a vida, essa vida que nos cabe, é assim mesmo, cheia de movimento, cheia de alegria. Cheia de desejos de presença e carregada desses buracos da ausência. E a ausência é essa saudade. Não, o tempo não voa. É só o seu celular que envelhece depressa demais.

Para deixar de comer chocolate

A guerra parece perdida antes mesmo de iniciada. Todos os dias a velha promessa de, só por hoje, não comer chocolate. Só por hoje. Não se parece com uma promessa tola exatamente porque começa com a humildade de não prometer o que não é possível cumprir. Não me proponho a nunca mais comer chocolate. Me proponho a não comer chocolate por hoje, apenas por hoje.

E sei que não estou sozinha. No mesmo instante que olho para a caixa de bombons ao lado da mesa do trabalho, alguém em outro andar do mesmo prédio olha para a carteira de cigarros, outra, no apartamento em frente, luta contra o desejo de subir na balança mais uma única vez, outros olham para o celular e se debatem com o desejo compulsivo de enviar mais uma mensagem para alguém, outro se segura na cadeira do escritório para não ir ao banheiro lavar a mão mais uma vez, apenas mais uma vez.

E eu e tantos outros sucumbimos. Perdemos a guerra. Rompemos a promessa. Comemos chocolate, fumamos um e outro cigarro, subimos na balança três, quatro vezes ao dia, esfregamos a mão até sangrar, procuramos mais e uma última vez o amor errado que prometemos nunca mais amar. Perdemos.

Mas se a promessa era só por hoje, a derrota também vale apenas por hoje. Com olhar de cachorro sem vergonha dizemos pra nós mesmos que perdemos mais uma vez, mas vamos continuar tentando. Mesmo que todos os dias sejamos subjugados, mesmo que o vício e o desejo se mostre impetuoso, mesmo que nos sintamos fracos e envergonhados, continuaremos tentando.

Porque ao final, se não vencermos nada, pelo menos não seremos derrotados de todo. E nos resta o dia de amanhã, e depois, e depois. E sempre permanecerá um resquício de desejo, uma lembrança de um gosto doce na boca, um restinho de sujeira na mão, a memória de uma rua, de um beijo, a calça jeans que não serve mais mas não nos desfizemos dela, uma última carteira de cigarros guardada no fundo do armário…