Pequena Flor de Laranjeira
Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.Arquivo de tristeza
alquimia
e se a gente transformasse
raiva em beleza
tristeza em amor
cansaço em compaixão
e se a gente transformasse
armas em flores
gritos em silêncio
silêncio em amor
e se o amor fosse suficiente,
bastaria?
Música para tempos sombrios
A vida anda mesmo miserável. E não é só pelo calor insuportável que nos ronda há semanas, mas também por essas notícias terríveis da humanidade que os jornais televisivos e as redes sociais jogam aos baldes na nossa parca consciência de cidadãos. O homem anda mesmo terrível. É bomba pra lá, assassinato pra cá, preconceitos descarados, pai traindo filho por pedaço de pão, gente prendendo gente como se fosse bicho, gente prendendo bicho como se fosse algo razoável, gente torturando gente porque prende bicho como se fosse algo razoável.
Isso sem falar no preço das coisas. Alguém anda ganhando muito dinheiro às nossas custas. E a gente reclama da política e vai lá e paga tudo. O que se há de fazer? Quebrar tudo? Isso não. A vida anda mesmo muito miserável. É de se abrir os olhos de manhã e fechar de novo. Dá para esperar mais um pouco? Dá para voltar só amanhã, quando, quem sabe, o mundo estiver mais calmo?
Certa vez ouvi de uma senhora que ela gostaria, um dia, de pedir perdão aos filhos por tê-los colocado neste mundo tão sombrio. Aquilo me pareceu uma declaração profundamente triste. Verdadeira, mas triste. Me lembrei então de algumas feministas radicais que, em luta contra uma sociedade que objetifica o corpo da mulher e o controla para a reprodução, se recusam a ter filhos. É um tipo de luta, uma luta contra um mundo sombrio. Se tudo está tão ruim, é melhor não dar continuidade a tudo isso.
Se, por um lado, podemos estancar essa escuridão do mundo, corremos o risco, também, de dar fim à toda beleza que nos cerca e nos salva dessa miséria que nos ronda. É cortar na carne, e perder tudo. Tudo. Quem, então, escreveria os novos poemas de Carlos Drummond de Andrade? Quem subiria no palco com tamanha leveza e sussurraria uma voz grave e melodiosa tal qual Maria Bethânia? Quem herdaria as pinceladas exóticas e os traços exatos que fizeram de Pablo aquele que conhecemos como Picasso?
Se decidirmos parar agora, o que nos restaria? Apenas a imagem de um negro preso a um poste por um bando raivoso? Ou a história completa e já desvendada de um jornalista atingido na cabeça por um explosivo durante uma manifestação? Ou ainda, o ódio e a discórdia que ronda os que trabalham no sistema público de saúde brasileiro?
Não, não pretendo pedir perdão aos filhos que virão. Quero antes que eles sejam arrebatados pelas histórias de García Marquez, que eles se emocionem, como eu, toda vez que ouço as Bachianas, que eles se encantem com o espetáculo das cerejeiras em flor, que aprendam a perceber a ponta da vara beliscando e entendam que o peixe já está ali, fisgado mas lutando, que percebam, algum dia, a surpresa nos olhos de quem aprendeu algo consigo, que se inquietem enquanto esperam alguém tocar a campainha.
E sim, eu tenho medo. Queria oferecer a eles um lugar mais aprazível para se viver. Mas se simplesmente eu recusar a eles a oportunidade de viver tudo isso, só porque o mundo anda sombrio demais, todos sairíamos perdendo. Nós, os que vivemos, já sem esperanças de mudança. Eles, que ainda virão, sem poder vir e experimentar e viver e, talvez, mudar. Por enquanto, o que faço é desligar o noticiário e botar a vitrola para tocar o velho poetinha. Saravá.
Aviso
Em cada caixa de lembranças deveria de haver um aviso: CUIDADO! PRODUTO ALTAMENTE TÓXICO.