Pequena Flor de Laranjeira

Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.

Arquivo de natureza

Prece à chuva, ou ao vento, ou à terra

Certa vez aprendi que uma prece deve começar com um louvor. É preciso reconhecer a grandeza daquele a quem se dirige. Em seguida, é preciso demonstrar a própria insignificância, a pequenez em que se encontra. Depois, quem sabe, e se for mesmo muito preciso, é que se fazem os pedidos. Há os que acreditam que nada deve ser pedido. Nada. Por fim, é necessário agradecer, sempre, pois um coração grato é o que garante acesso aos pedidos que às vezes nem foram feitos. Antes de terminar a prece, no entanto, bom é que se reconheça novamente a grandeza de quem se dirige, e o louve. E então, só então, dizemos amém.
Pois que essa estrutura de prece dificulta muito as coisas. Primeiro porque ainda não aprendi a louvar as coisas pequenas. Como me dirigir ao ramo que nasce na haste da hortelã, esse ramo que me enche de esperanças, honrando e louvando sua grandeza? Como louvar uma haste tão frágil que se quebra porque cresce e não suporta o próprio peso? Não, eu não aprendi a louvar as coisas pequenas. Ainda assim, é essa haste, frágil e quebradiça, quem me ajuda a olhar para o mundo de uma forma mais perfumada.
E então, em seguida, é preciso reconhecer a minha pequenez. Não, eu não sou pequena diante de tudo o que amo. Sou é grande demais. Desajeitada. Me falta a delicadeza. Andar de elefante que há tempos me acompanha. Meu defeito é esse, é sobrar, é vazar pelas bordas, é não caber. É aguar demais. É olhar muitas vezes. É repetir o mesmo, sempre e sempre.
Quanto aos pedidos, paciência. A precisão é demais e não é de bom tom se dar ao luxo de deixá-los de lado. Peçamos sempre. Por favor, peçam por mim também.
Chegamos, por fim, aos agradecimentos. E fico então perdida frente à natureza que me circunda. Olho para a chuva, para o vento, para essas coisas – essas, sim, poderosas – e tento agradecer sua presença generosa em nossas vidas. Mas me resta uma dúvida, colada à pele, de que nem o vento, nem a chuva, nem mesmo a haste da hortelã, nada disso é capaz de me ouvir. E meus agradecimentos seriam bajulações vazias, sem sentido de existência. Como agradecer à terra o amor que vem de meus amigos? Como agradecer aos céus o alimento do dia a dia? Como agradecer à chuva o cheiro que ela espalha pela terra e me enche as narinas e os sonhos? Seria preciso aprender a língua da natureza, mas língua é coisa de homens, e natureza não se comunica.
Resto, então, perdida, necessitada de uma prece bem rezada e sem um santo que me auxilie. Sem um terço que me oriente. Com desejos e sonhos na fila de espera, com um coração carregado de pedidos a agradecimentos. Olhando para a chuva que chove ou chora. Ouvindo o vento que uiva ou canta. Aguando plantas que crescem e me alimentam dia a dia. Balbucio, trêmulo, um amém inseguro e duvidoso. Amém.

Amor, amor, amor

Há ainda a roupa estendida no varal, mas isso não é importante, meu amor. Esqueça. Esqueça também a alta dos tributos. Já há vozes em demasia a bradar por soluções: as propostas escorrem pelo ladrão. Não se preocupe. Aquele boleto em cima do balcão da cozinha, ainda no início das centenas de parcelas, esqueça. Ele será pago a seu tempo e nada há que fazer. É preciso buscar as roupas na passadeira, ligaram hoje dizendo que está tudo pronto. Está pronto, como tudo fica a seu tempo. Não se preocupe. Amanhã buscaremos. O prazo final para entrega daquele seu projeto se aproxima. Não é preciso lembrar. Mas é preciso dizer não se preocupe. As linhas e as palavras foram construídas ao longo do tempo. Não se preocupe.

É preciso, porém, estudar com urgência novas línguas, e descobrirmos novas maneiras de dizer “eu te amo”. E dizê-las todos os dias, pelo menos uma vez ao dia. É preciso guardar, de maneira solene e sagrada, o entardecer, para percebermos, juntos, o canto que cantam os pássaros ao voltarem para suas casas, o barulho que fazem os bichos que revolvem a terra ao se prepararem para a chegada do orvalho, o vento que entra em casa e nos convida a passear.

Não se esqueça, no entanto, de arrumar a cama todos os dias, para que ao anoitecer ela esteja pronta para receber os nossos corpos cansados, e nos abrace, como nos abraçamos todas as noites. Não se esqueça também de vigiar meu sono, para que não se percam as palavras que digo quando não tenho controle de meus segredos: posso ter esquecido, ao longo do dia, uma nova expressão de amor.

Lembre-se que é preciso, todos os dias, aguar a horta. E ao se curvar, meu amor, sobre o canteiro, não se esqueça que devemos essa mesma reverência a tudo o que é pequeno, a tudo o que é lento, àquilo que passa despercebido: uma lágrima sozinha, um suspiro distraído, um olhar cheio de medo. E como fartamos a terra de água, que possamos também nos fartar de cada detalhe, preenchendo, assim, nossa eterna necessidade de amor.

Não é de bom tom, meu amor, desperdiçarmos o tempo. Que as mãos estejam sempre entrelaçadas. Que o pressentimento chegue antes da voz que clama por carinho. Que os olhares se cruzem e não se afastem. Que o abraço não termine antes do final do choro. Que haja sempre chocolate à mesa, casado ao cheiro de café coado. Como eu e você. Como eu e você.

Correnteza

Havia chovido muito e a rua detrás de casa estava inundada: a água que corria entre o meio fio e o asfalto se parecia com um rio ao meus olhos de menina. Aos meus olhos e aos do meu irmão. Não nos arriscávamos naquele rio, ficávamos na beira, olhando, olhando. Tudo parecia grande e profundo, e o medo de enviar o pé num caco de vidro – as palavras de minha mãe ressoando em nossas mentes – nos impedia de adentrar a corrente.

Até que avistamos um pardal, pequeno, pequenino, lutando contra a correnteza. Frente a uma criatura tão frágil lutando tão bravamente para sobreviver, esquecemos, meu irmão e eu, dos dizeres de minha mãe, adentramos a enxurrada e andamos na direção do pobre pardal. Eu o peguei nas mãos, ou talvez meu irmão o tenha pegado, ele ainda se debatia, encharcado, tentando se livrar do nosso cuidado. Trouxemos o pequeno pássaro para dentro de casa. Não me lembro ao certo, mas tenho quase certeza de que minha mãe olhou repreensiva a princípio, mas aos poucos se deixou amolecer pelo nosso cuidado com o pequeno bichinho. Ela mesma foi até o quarto, trouxe o secador de cabelo, uma caixa de sapato e uns pedaços de jornal. Ela não nos mandou direto pro banho, mas deixou que a gente cuidasse do nosso mais novo amor.

E cuidamos. Cuidamos com cuidado, cuidamos com amor. Amor de criança que ainda não sabe como cuidar, que exagera, que estraga. Secamos o bicho, acariciamos o bicho, lhe preparamos uma cama e uma casa, talvez tenhamos deixado até um pouco de comida para ele. Mas criança não sabe o que pássaro come, e não me lembro exatamente como tentamos matar a fome do nosso novo animalzinho de estimação.

Fomos, então, dormir, felizes, satisfeitos da nossa missão. Meu irmão e eu dormíramos heroicos, havíamos salvado uma vida, por mais pequenina que fosse. Cuidamos de um ser pequeno que precisava da gente, antes de qualquer coisa, ele precisava da gente.

Mal amanheceu, meu irmão me chamou na cama e fomos juntos velar pelo nosso animalzinho. Chegamos silenciosos e afoitos ao mesmo tempo, numa ansiedade daquele que erra ao tentar fazer tudo da forma mais perfeita. Nosso cuidado, no entanto, não fazia mais sentido. O bicho já estava morto na caixa, quase endurecido. Eu não vi nos olhos do meu irmão a mais leve tristeza. Ele, por sua vez, não pôde perceber a minha profunda frustração. Pedimos à nossa mãe a enxadinha de meu pai, fomos até o quintal, cavamos um buraco e ali fizemos o enterro do pequeno animal.

O quintal, hoje, não é mais o mesmo. Eu não seria capaz de adivinhar onde está enterrado o nosso primeiro pássaro. Mas sei que ali, atrás da minha casa, foi velado, pelos meus olhos de criança, o meu primeiro amor, o meu primeiro cuidado. E a cruz de gravetos que durou apenas um dia sobre o pequeno túmulo improvisado me faz lembrar que não basta apenas cuidado, sendo preciso muito mais desejo para encontrar as respostas para tanto enigma que a vida carrega em si.

Temperatura ambiente

Meus olhos se perdem na janela. Será que faz frio ou calor? É dia de ódio ou de amor?