Pequena Flor de Laranjeira
Pequenas crônicas, pequenos contos. Textos semanais. Por Adriana Taets.Arquivo de generosidade
Uma lição de generosidade
Era um almoço de família, me lembro bem: todos os primos e tios e avós disputavam lugares à mesa. A mesa, apesar de grande, não abrigava a todos, nem o avarandado cobria todo mundo. Cada mãe, então, aninhava seus filhos ao redor, garantindo a eles lugar e comida. Minha mãe não. Ela chamou a mim e a meu irmão no canto, abaixou-se para nos falar olhando nos olhos e nos disse que nós – ela, meu irmão, meu pai e eu – iríamos comer na cozinha.
Enquanto meus primos se divertiam na varanda, sentados à mesa grande, protegidos pelas asas largas de suas mães, meu irmão e eu comíamos na cozinha, escondidos, separados, muito mais perto dos empregados. Meu coração de criança não entendia, se enraivecia – afinal, por que também eu não merecia um lugar à mesa da família?
Olho para minha filha que ainda nem fala angu, dadá, papá, e me vejo rodeando seus lugares, sonhando sonhos grandiosos para ela, desejando que ela seja isso ou aquilo, isso ou aquilo outro. Me percebo ajuntando dinheiro, fazendo poupança para garantir seus estudos lá na frente. E de soslaio me vem, então, a lembrança daquele almoço, da minha família na cozinha, dos meus primos na varanda, do meu coração de criança. Minha mãe, apesar da minha revolta, nos ensinando, a mim e a meu irmão, a sairmos do centro das atenções, nos convidando para viver, um pouco que seja, à sombra. Nos ensinando a ceder, a esperar, a nos afastar.
E hoje, ao olhar para minha filha, percebo que o que mais desejo a ela é um coração cheio de generosidade. Generosidade consigo e com os outros. Desejo que ela seja paciente com a distância que vai, sem dúvida vai, separar a realidade de seus sonhos. Desejo que ela seja generosa com os que erram muito e com os que erram pouco. Desejo que ela seja grande para aceitar a pequenez que lhe assombra diariamente. E em meio a esse desejo ridiculamente ambicioso, me lembro de minha mãe, me lembro da cozinha e de meus primos na varanda à mesa grande. Só uma pessoa com a grandeza de caráter de minha mãe é capaz de esconder seus filhos e, à sombra, lhes contar os segredos mais preciosos da existência humana. Só alguém que sabe, sem titubear, que seu amor é suficiente, é capaz de oferecer menos aos filhos, na certeza de que o menos é mais. Só alguém com profundo conhecimento do valor de si e do valor do outro é capaz de pedir aos filhos que sejam generosos, e cedam seus lugares de domingo, e amem aos outros, fazendo a eles o que se faria a si mesmo.
Esse almoço de domingo em família grudou na alma muito mais que as máximas ouvidas na escola e na igreja. Porque generosidade não se aprende nos livros, nas rezas, nos presentes. Generosidade não se cria ao simplesmente recebê-la. A generosidade se aprende ao sermos desafiados a doar aos outros aquilo que amamos com a nossa alma. E percebemos, depois do vazio inicial, que estamos ainda mais completos, ainda mais aquecidos que antes. E se a lição não se transmite, mas se vivencia, desejo então que, como minha mãe, seja eu capaz de oferecer a mão a minha filha, e vivermos juntas o desafio de dar aos outros mais ainda que aquilo que desejamos à nós mesmas.
Abraços grátis
Tenho inveja das pessoas que sorriem com facilidade. Tenho inveja também daquelas que são generosas por si mesmas. No tumulto de uma praça no centro da cidade avisto um menino gordinho, quase não adolescente mais, com uma placa no pescoço. Ele não oferecia vagas por uma hora em algum subsolo. Nem comprava ouro, nem vendia atestado médico. Ele oferecia abraços grátis. E sorria.
É certo que seria no mínimo duvidoso uma placa no sentido contrário: “Abraços por apenas 1 real!”. Abraço não se vende, pelo menos não explicitamente. Há quem venda carinho com o nome de sexo, há quem ofereça companhia a preço de uma diária, há ainda quem se faça de amigo, parceiro ou sobrinho querido para conseguir algum bem monetário.
Mas é certo que abraços não se vendem. Assim como é certo que não se oferecem abraços a estranhos. Logo, o gordinho ali, no meio daquela praça, se parecia mais com um engano, um engodo, um erro de interpretação.
O problema é que ele sorria, e assim como os abraços que oferecia, seu sorriso também era gratuito. Poucas pessoas tinham coragem de se apropriar daquela oferta de abraço, desconfiadas, sem dúvida, do seu teor subversivo – quem garante que aquele não era, na verdade, um pivete a se aproveitar do momento derradeiro do abraço para se apropriar da carteira esquecida no bolso de um sujeito carente?
Se poucos se fartavam da oferta singela do rapaz, muitos, ao contrário, sorriam ao perceber no meio da praça oferta tão singela, acompanhada de um sorriso anda mais gratuito do que os abraços da propaganda. Rostos preocupados momentaneamente transformados pela generosidade de um menino que ainda iria conhecer muita cara feia na vida.
Tive inveja do gordinho. Queria eu distribuir sorrisos, andar mais leve pela rua, ter o semblante menos preocupado, perceber mais o dia. Queria eu ter a generosidade de oferecer abraços sem cobrar nada em troca. Simples como um abraço grátis.